quinta-feira, 24 de março de 2011

Jornalismo Lello

Primeiro dia de campanha eleitoral. As televisões dão pancada na oposição e tratam o Governo como vítima. O nosso mal não são seis anos de total descontrolo da despesa, com a propaganda no lugar de um Projecto, sem crescimento. O nosso mal foi a tarde de ontem. Por causa da tarde de ontem há desempregados, os velhos não podem comprar medicamentos, o IVA subiu e os juros também, as pensões são miseráveis e os "ferroviários" - eu juro que ouvi isto - podem ficar sem emprego. Tudo esmiuçado em reportagens com três ministros e cinco deputados do PS lá dentro, a exercer o tal contraditório da imprensa disponível. A narrativa é mais infantil do que uma aventura do rato Mickey. O herói levou muita pancada, mas ainda pode renascer das cinzas para nos salvar. O jornalismo vê Portugal e o Mundo com aqueles óculos do José Lello, e pisca-nos o olho.

domingo, 13 de março de 2011

A DESCIDA

Sinto-me como aquele surfista resgatado ao mar alto no fim de três dias em cima de uma prancha. Enfrentei o perigo de um Maelstrom de gente na Avenida e sobrevivi. A minha felicidade é maior porque me portei com definitiva irresponsabilidade. Eu segui, sem ter aprendido nada com a desgraça deles, os marinheiros fanfarrões de Poe, mortos e engolidos no vórtice por infantil temeridade. Soares, Pacheco e o Miguel da TV, que são os meus melhores amigos porque são os maiores amigos de toda a gente, avisaram-me. O vórtice era antidemocrático. Era fascista. O vórtice, supremo perigo, não sabe escrever e eu também me atrevo a gostar tanto de textos bem escritos. O vórtice ia dar cabo de mim e ia dar cabo disto. E só aqueles três distintos amigos podem criticar isto e criticar-se entre eles, porque só eles forjaram nos livros deles, nas históricas acções fundadoras deles, nos comentários, cópias da chave secreta que regula o funcionamento disto e põe tudo a funcionar. Eles avisaram-me mas eu fui.

Quando embarquei no batel que me levaria ao vórtice olhei uma última vez a minha praia. Vi os prédios do largo da Graça que hão-de ruir como baralhos de cartas quando chegar o sismo porque os fiscais disto tudo se estão nas tintas e os meus três amigos ainda não tiveram tempo para ler os livros que anunciam a grande matança. Pensei no meu cão, se já teria idade para sobreviver sem mim. Vi-o amanhã, deitado ao lado do mendigo da Moviflor, depois de almoçar um pedacinho de carne no restaurante do tio David, que voou do balcão entre lágrimas de saudades minhas. Li essas manchetes de Abril, em todas as bancas de jornais. Todas lamentavam a destruição disto, que apesar da poluição, da corrupção, do pequeno pinóquio e de todo o veneno sempre é uma praia muito bonita. Uma praia sem palmeiras, é certo, onde a sombra só chega para uma minoria dormir descansada, em que não há sequer peixe para todos mas cada um ainda tem a espinha que lhe cabe por direito, mérito e condição.

Quando o batel desceu a encosta e deixou para trás o meu bairro lembrei-me de que ainda na semana passada jantei uma lampreia sem agradecer a quem a teria pescado. Foi esse o argumento derradeiro dos três amigos: esta odisseia criminosa ainda se perdoava a uns, se fossem poucos, desgraçados, mas não a mim. Quem ainda pode pagar uma ou duas lampreias por época sem molhar as mãos na água não devia enfrentar a morte e deixar o nome escrito no memorial dos que deram cabo disto. Na praia há contratos, maiores do que alcança a própria distância, e eu sempre tenho um. Na praia trezentos amigos fazem negócios, mas ainda me pagam um “ordenado”. Na praia eu posso falar ao telefone, como eles. Na praia, quando falam demais, dois amigos falam com outros e limpam para sempre as conversas, mas eu também já fui ilibado. E não, não me ponha a pensar, porque há gaivotas em terra e armas para as abater a tiro, não me ponha a pensar se a sentença foi justa, porque na praia somos todos culpados. Na praia basta saber ler. Se está escrito que somos livres, somos. Se no livro das juras os juízes são independentes como os moleiros e os jornalistas livres como pardais, são. Na praia pão é pão, gasolina é energia, vento e ondas do mar, reformar é sempre bom, televisão é verdade e política é espectáculo. Se eu janto lampreia, que assista em silêncio ao acto.

Desembarquei no vórtice cansado de tanto pensar e, como as baleias e o urso de Poe, com o espanto natural de um bicho pesado mas obediente a Behaviour, o grande pescador imaginário. Eu ia participar no grande espectáculo alternativo à política, a que não poderia sobreviver. Havia gente e outra gente que cantava, mas o urso também fez ouvir a sua morte da falésia às escarpas e todos recordam essa música em pesadelos. Vi a seguir as câmaras que por momentos tinham abandonado o Miguel e estremeci de pena. Depois reparei que fotografias com 37 anos ganhavam vida, como se isso fosse possível, sem o comboio do Soares ter chegado, nem a cara bolachuda dele aos cartazes. Pensei quanto tempo teríamos até o asfalto se abrir para nos engolir e que o céu desabasse. Senti-me culpado por tanta ignorância e tantas fotografias. Como podia tanta gente abraçar a morte da Democracia com um sorriso e gritar o contrário? Como pôde tanta gente sobreviver, olhar-me com o brilho cúmplice que deve ser o dos criminosos e ter regressado à praia, o que só pode ser lido, interpretado e comentado como uma ameaça?