quinta-feira, 20 de março de 2008

A REMODELAÇÃO


Com o anúncio do regresso do Hospital Amadora-Sintra à gestão pública José Sócrates varreu Luís Filipe Menezes do centro político e remodelou verdadeiramente Correia de Campos, mas meteu-se num problema.

Luís Filipe Menezes pôs-se a jeito. Para um alegado candidato a primeiro-ministro que a dois anos das eleições assume que ainda não tem programa nem merece governar, o líder do PSD foi estrondoso a apresentar uma solução milagreira para o Serviço Nacional de Saúde: a privatização da gestão dos serviços públicos. Não lhe ocorreu explicar porquê. Talvez ninguém lhe tenha falado dos maus resultados da grande experiência europeia de parcerias público-privado na Saúde, as célebres PFI inglesas. Talvez não tenha perdido um segundo para pensar nas eternas divergências de contas entre a administração do próprio HAS e o Estado português. Que é isso da Administração Regional de Saúde, da ministra Manuela Arcanjo, do Tribunal de Contas e da Inspecção-Geral de Finanças? Que mal há em tantos dirigentes e organismos da coisa pública terem reclamado 15 milhões de contos de financiamento indevido e o Estado ter saído de um amistoso tribunal arbitral a pagar mais 6 milhões? Que mal há em não haver contas fechadas desde 2004? Luís Filipe Menezes deu uma de Margaret Thatcher de calças mas pareceu saído de um almoço de negócios, não de uma madrugada de estudo.

José Sócrates percebeu que podia resolver um problema que atinge injustamente a própria ministra da Saúde, Ana Jorge, ainda arguida num espantoso processo em curso no Tribunal de Contas, que visa obrigar um batalhão de ex-gestores da ARS de Lisboa a repôr verbas que o amistoso tribunal entre as partes deu como liquidadas. E não perdeu a oportunidade de varrer do centro político o líder da oposição. O eleitorado flutuante, que decide eleições, já percebeu a diferença entre iniciativa privada e confusão público-privado. E em época de crise são cada vez menos os que aceitam ter governos transformados em agências de negócios.

O regresso do HAS à esfera pública significa também a remodelação política de Correia de Campos. Não é preciso trazer para aqui informação de bastidores para sustentar esta ideia. O ex-ministro da Saúde sempre foi um entusiasta da gestão privada do hospital. Não é preciso recuar ao tempo em que Correia de Campos era presidente do Instituto Nacional de Administração, organismo que produziu um relatório confuso e inconclusivo sobre a avaliação comparada dos hospitais Amadora-Sintra e Garcia de Orta, de Almada. Basta recordar que o ex-ministro da Saúde acabou o mandato a defender a gestão privada em pleno Parlamento, quando o deputado João Semedo, do Bloco de Esquerda, o confrontou com o facto de o Estado não conseguir (outra vez!) fechar contas com o hospital de há quatro anos para cá.

Se José Sócrates fez duas vítimas num só discurso também deu uma cajadada na própria cabeça. Manteve os procedimentos em curso para concessionar a gestão de quatro novos hospitais a grupos privados, o maior dos quais, previsivelmente, à mesma empresa. Esta decisão, fora outras considerações, vai ter sempre à perna os argumentos demolidores do primeiro-ministro para afastar o grupo privado do HAS:

"Em primeiro lugar, a organização empresarial dos hospitais públicos é hoje um dos principais factores de modernização e racionalização hospitalar. Não há nenhuma razão para que o modelo dos hospitais EPE, que tem tido resultados positivos, não se aplique também ao hospital Amadora Sintra.
Em terceiro lugar, a experiência mostra que é difícil ao Estado acompanhar e assegurar o cumprimento integral dos contratos e a plena salvaguarda do interesse público em todas as situações. É, aliás, muito duvidoso que os eventuais ganhos de eficiência compensem os custos administrativos necessários ao controlo público dos contratos de gestão privada".

É o que se chama uma contradição política com incalculáveis milhões à mistura. Mas o líder da oposição, com as posições que assumiu, não pode tirar dividendos do facto. Se calhar é mesmo melhor guardar o resto do programa para mais tarde.

domingo, 16 de março de 2008

O meu privilégio


Passei quinze dias em Havana, uma cidade que me encanta, com um grupo de 150 algarvios cegos ou quase cegos que foram lá recuperar um direito fundamental: a visão. O direito a verem Vila Real de Santo António, a cidade que o Algarve mostra a Espanha, o Rio Guadiana, a família, os amigos. O direito a verem-se ao espelho. O João, nesta fotografia de reportagem à minha direita, tem 22 anos e está ameaçado por uma doença que leva à cegueira total, mas não quer desistir de ver a namorada brasileira que o meteu na adolescência. Policarpo, velho pescador de 81 anos, que passou a vida inteira no mar, precisa do olho que lhe resta para continuar a remar todos os dias para a sua Fernanda, a ilha que lhe tiraram de casa para um lar a quatro quilómetros a pé porque pensões de 200 euros não pagam tratamentos em casa.

Podem pensar que o melhor que um jornalista de 34 anos traz de Cuba é a vida de La Habana. Engano puro, mais puro do que os charutos. O que eu ganhei para a vida em quinze dias de reportagem foi um grupo de amigos. O João, o Poli, a Graciete, o Alfaro, o Ricardo que inventou a sueca com onze trunfos, a Madalena, o casal Nené, a Miraldina e a sua gata Tekas, a minha Calafate, o Manuel de Deus (um pinga-amor de 90 anos) e todos os que eu não conheci melhor porque quinze dias não é muito tempo. Comecei a contar a odisseia deles esta noite e amanhã a TVI vai pôr no ar uma grande reportagem. Estou profundamente inquieto porque não sei se conseguirei mostrar às pessoas quem eles são. Nem como foram tratados pelo Serviço Nacional de Saúde e pela Oftalmologia portuguesa.

Mas vou tentar. Isso vou.

sexta-feira, 7 de março de 2008

OS PROFESSORES



"Seria bom, Agatão, que a sabedoria fosse uma coisa que se pudesse transmitir, de um homem que a possui, a um homem que a não possui, mediante um simples contacto mútuo, tal como a água que passa para um copo vazio através de um simpes fio de lã"

Este excerto de O Banquete, de Platão, marcou-me profundamente na adolescência, época em que andei muitas vezes à guerra com professores. Foi no ensino secundário, ou talvez no agora denomidado 3º ciclo do ensino básico. Em boa verdade, o resto do diálogo socrático já se me passou, mas esta ideia ficou-me para sempre desde a primeira leitura.

Marcou-me como poucas coisas. Hoje tento analisar essa emoção. Esta frase antiga é sobre o problema eterno da transmissão do saber. Para mim, o que conta é que dá por adquirido que há mestres. Aliás, se não os houvesse, se não fossem então reconhecidos, estou certo de que os gregos não discutiriam o assunto.

Muitos dos meus problemas com a escola nasceram deste preconceito. Fui quase sempre injusto, é certo, mas parte das minhas revoltas com professores resultaram do facto de ter sido bem (mal?) habituado. Eu pertenço a uma geração de felizardos que teve contacto com mestres.

Tive uma professora primária, chamada Irmã Bernardete, absolutamente extraordinária e absolutamente competente. Devo-lhe, sem exagero, tudo o que fui capaz de aprender depois dela. No ensino secundário conheci depois os dois grandes professores da minha vida. Rui Leite Braga, que me ensinou História, e o Sócrates, meu professor de Filosofia no 12º ano, que tinha nome próprio mas era assim conhecido e assim vai perdurar enquanto um aluno dele estiver vivo neste planeta. Não me sinto ainda hoje capaz de escrever sobre eles.

Os nomes deles ficam aqui porque quero testemunhar que há grandes professores que nunca deram aulas numa universidade. Não sei se amanhã os grandes professores que eu não conheço se vão manifestar ou não. Acredito que sim depois das miseráveis incursões da polícia nas escolas. Quanto à política de Educação, não tenho nada a dizer porque a conheço pouco. Aguentei alguns anos a acompanhar o assunto, era Marçal Grilo ministro e eu jornalista iniciado de O Independente, mas fiquei tão esgotado com a experiência que, com a complacência dos meus chefes, nunca mais voltei a ele.

No entanto, retenho desse tempo em que acompanhava "o sector" (odeio esta palavra mas ponho-a aqui para vos lembrar como chamamos hoje às escolas) uma informação que me parece relevante. Os futuros professores entravam no ensino superior com notas miseráveis. Lembro-me de "sacar" das catacumbas mais obscuras do ministério um relatório da Inspecção-Geral da Educação que contava a história toda. Eram admitidos em cursos das Escolas Superiores de Educação, para professores do 1º ciclo, alunos com notas 6 e 7 a Português e a Matemática. Ou seja, no lugar da minha Irmã Bernardete muitas crianças deste desgraçado país aprenderam a ler e a contar com gente que nunca saberá ler nem contar, já não digo como ela. Foram para professores porque não tinha média para ingressar nos cursos de que gostavam.

Não me espanta que qualquer sistema de avaliação de professores seja uma década depois impraticável. Não sei, por falta de estudo, ajuizar sobre o sistema em discussão. Mas tenho uma ideia sobre o que faz falta às nossas escolas democráticas. Depois da massificação, que tentou dar a todas as crianças portuguesas iguais oportunidades de aprender e escolher um modo de vida, faz falta qualidade. Qualidade, um pouco mais de exigência e de mérito. As civilizações podem suceder-se que as escolas serão sempre o lugar dos escolhidos para transmitir saber e dos eleitos para o receber.

Numa sociedade consciente os professores seriam os melhores, ou pelo menos escolhidos entre os bons, teriam todos escolhido a carreira por vocação e seriam compensados moral e financeiramente por isso. Não vale a pena debater sistemas de aprendizagem ou de avaliação se os professores não o forem de facto. Só um doido discute como passar a água de um copo vazio a outro. Será que o Governo tem alguma política sobre isto? E a sociedade pensa no assunto ou está só a ver se ministra abana?