sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

MACACOS MORDAM O TGV

O editorial do Jornal “I” de ontem (link indisponível) é pertinente por chamar a atenção para o caos instalado no debate sobre comboios de alta velocidade em Portugal: «Basta consultar os jornais impressos, online, ver as televisões e ouvir as rádios para perceber que há tantas versões como órgãos de comunicação e tantos entendimentos quantos os contactos com a notícia», escreve o director, Eduardo Oliveira e Silva (EOS).

EOS diz com graça que a culpa só pode ser "do macaco", porque “não atinge o óbvio”. Por mim, podemos pôr nomes aos macacos: os políticos, que mil vezes opinaram sem saber do que estavam a falar, e os jornalistas, que mil vezes noticiaram nas mesmas absurdas e temerárias condições.

EOS, infelizmente, perde autoridade por cair na mesma tentação. Escreve ele que «do comunicado do Ministério das Finanças (onde o português é capaz de não ser a língua veicular) apenas parece transparecer que o governo conseguiu fazer que parte das verbas previstas para o TGV de passageiros passasse para um projecto ferroviário de mercadorias em bitola europeia. Ora entre isso e o TGV vai uma distância abissal».

Para ser claro, e sem ofensa, abissal é o erro de EOS, jornalista que não conheço mas que me habituei a ler e respeitar.

“TGV”, ou Train à Grande Vitesse, é a sigla com que foram baptizados em França os comboios de alta velocidade. Ora, o que se discute em Portugal, há muitos anos, é a construção de linhas de caminho-de-ferro. Essas linhas visam inserir a rede ferroviária portuguesa, como a espanhola, na rede europeia de comboios rápidos, mas também de mercadorias. Por alguma razão, os fundos comunitários se chamavam RTE - rede transeuropeia de transportes.

A questão prévia para entender isto é a bitola (distância entre carris). As linhas de caminho-de-ferro originais de Espanha e Portugal (de bitola ibérica) são mais largas do que as linhas francesas e da generalidade dos países da Europa (de bitola europeia). Há quem defenda que a opção espanhola por uma linha ferroviária incompatível com a francesa se deveu a uma questão estratégica de Defesa: dificultar a logística de tropas invasoras. Não sendo especialista no tema, julgo mais adequada a explicação maioritária entre historiadores: a opção visou antes reforçar a coesão territorial espanhola. De resto, se consultarmos a rede espanhola, é nítido o desenho «radial» com Madrid como centro.

Em Portugal, curiosamente, parece que as primeiras linhas foram construídas em bitola europeia. Mas acabou por impor-se a bitola ibérica, pela razão simples de que só nos podemos conectar com qualquer outro país, enquanto os comboios não voarem comos aviões, através de Espanha.

Esta circunstância tornou-se altamente penalizadora para a Economia portuguesa, a mais periférica da Europa ocidental. Excepcionando a Espanha, mais de 99 % das mercadorias que exportamos e importamos por via terrestre circulam por estrada. A opção ferroviária, muito mais económica e ambientalmente sustentável do que os camiões TIR, praticamente não existe.

A rede transeuropeia de alta velocidade, com generosos fundos comunitários dedicados, era e ainda é uma oportunidade histórica para ultrapassar este problema e aumentar a capacidade de atracção de investimento da Economia portuguesa. Os espanhóis perceberam isso primeiro. Salvo erro, a primeira linha de alta velocidade espanhola (Madrid-Sevilha) foi construída, em bitola europeia, como todas, para a Expo’92. Mas daí para cá a rede espanhola tem crescido a olhos vistos, ao ponto de estar previsto, no respectivo plano estratégico de transportes, a definitiva migração, ou substituição, da bitola ibérica espanhola para bitola… europeia.

O erro abissal de EOS é o que a seguir se explica. Uma linha de bitola europeia pode ser construída só para passageiros, mas também com a finalidade de ser “mista”: para passageiros e mercadorias. A linha, como ontem dizia com graça Manuel Moura, primeiro presidente da RAVE à TVI, é uma coisa fixa, não tem velocidade. Os comboios que lá andam é que podem ter velocidades variáveis. É como na A1: pelo facto de lá andarem ferraris, nada impede que, mais devagar, também circulem camiões com porcos, como se viu há duas semanas nas notícias.

O primeiro erro da discussão portuguesa é, precisamente, de nomenclatura. Ninguém se lembra de chamar “Ferrari”, “Ford” ou “Fiat” a uma autoestrada. Mas chamamos “TGV” a uma linha de caminho-de-ferro: políticos, jornalistas, comentadores e, por arrasto, o povo em geral. O nome é imbecil, mas tornou-se incontornável. Eu próprio, nas minhas notícias, recorro a ele, para não violar a lei jornalística que me obriga, e bem, a comunicar com os espectadores, embora tente sempre chamar a atenção para a abissal diferença entre um comboio e a linha em que ele circula.

Ora, o projecto da linha “Madrid-Lisboa”, de que falou o ministro das Finanças em resposta escrita a umas perguntas da TVI, é e terá de ser sempre para passageiros e mercadorias. Pela razão simples de que vai conectar-se, do lado espanhol, com uma linha mista (recordemos, para passageiros e mercadorias), entre Badajoz e Madrid.

O projecto do governo de Sócrates tinha esse erro original. Ao lado da linha de alta velocidade, em bitola europeia, previa a construção de uma nova linha, na condenada bitola ibérica, dedicada às mercadorias. Foi por isso que Manuel Moura, há uns anos, numa entrevista que me concedeu, classificou esse projecto de “tacanho” e de “salamancada” (os livros de História mostram como não há crítica mais impiedosa para um ferroviário). O segundo problema do projecto PS era que a bitola europeia não ligava directamente aos nossos portos-de-mar de Sines, Setúbal e Lisboa. De resto, em contradição com a estratégia dos espanhóis, que já ligaram e vão continuar a ligar as linhas de bitola europeia do AVE (o nome deles para o “TGV”) aos seus portos-de-mar.

Com o projecto PS, chumbado por outras razões pelo Tribunal de Contas, se quiséssemos carregar comboios para qualquer país da Europa para lá de Espanha, teríamos sempre de fazer uma ruptura de carga na plataforma logística prevista para o Poceirão. Isto poderia ser um bom negócio para os accionistas do Poceirão, mas trazia de volta o grave problema logístico e económico que afecta as nossas empresas e portos. Principalmente o de Sines, que é um porto que Deus fez de águas profundas, e por isso habilitado a competir com os portos espanhóis, holandeses e italianos na recepção dos grandes navios Panamax, possíveis pelo alargamento do Canal do Panamá, carregados de mercadorias provenientes do oriente. A nossa localização periférica pode ser uma desvantagem por terra, mas torna-nos no primeiro país para quem chega por mar.

Quem tiver lido o último livro do ministro Álvaro Santos Pereira sabe do que estou a falar, bem como quem se recordar de algumas reportagens mais antigas da TVI, no tempo em que nenhum outro órgão de comunicação social falava de “bitola”, mas apenas de “TGV”. O ministro Gaspar diz que o projecto “Lisboa-Madrid” foi refocalizado nas mercadorias. Ainda bem. Mas isso não significa que a linha fique interdita a passageiros, o que seria absurdo.

Aliás, do ponto-de-vista técnico, pode-se fazer uma linha só para passageiros. O contrário, neste caso, é que não faz sentido. É que são precisamente as mercadorias que tornam mais exigentes e caros os critérios de pendentes (desníveis da linha) da obra.

Resta responder a alguns macacos, desses que nunca estudam nada mas opinam sobre tudo, que se agarram a um último argumento como se fosse o derradeiro galho da floresta: a linha será só de mercadorias porque os comboios de passageiros, para entrar em Lisboa, necessitarão sempre de uma nova ponte, para a qual não há dinheiro. Mais uma vez, esses macacos estão errados. Os comboios de alta velocidade podem entrar na Ponte 25 de Abril pela linha actual. Existem comboios de alta velocidade para passageiros de duplo eixo, que mudam de uma bitola para a outra em andamento. Espanha usou-os durante muitos anos para ligar Madrid a Barcelona. Será que não servem para ligar Lisboa ao Poceirão?

EOS, se um dia chegar a ler-me e a confirmar estes argumentos com quem sabe destas coisas, vai seguramente concluir que as fontes que o convenceram de uma diferença “abissal” entre uma linha em bitola europeia para mercadorias e uma linha para comboios de alta velocidade têm, apenas, uma motivação política.

Passos Coelho, para ganhar eleições, em lugar de atacar as graves fraquezas do projecto do PS, como aquela loucura de uma nova ponte sobre o Tejo em tempos de crise, alinhou pela turba que diabolizou o “TGV”. O problema é que ele agora é Primeiro-Ministro. Mais cedo ou mais tarde, teria de defender em público uma linha de alta velocidade mista até Badajoz, porque a negociou com Espanha e Bruxelas.

Como nunca admitirá que antes de ser PM era mais um macaco a falar de comboios, Passos Coelho anda a tentar arranjar macacos que digam que a linha dele não terá comboios de alta velocidade de passageiros. Não? Mesmo que apareça um operador ferroviário privado, ou ligado ao estado Espanhol, interessado? Mas alguém acredita que a ligação Santa Apolónia – Chamartin vai continuar na linha actual quando estiver construída a Linha Lisboa-Badajoz-Madrid? Porquê? Acharão todos os passageiros mais sexy passar a noite num comboio?

Uma linha de alta velocidade só para mercadorias, como escreveu a SIC em reacção à notícia da TVI, é propaganda política que não pode ser levada a sério. Essa, sim, é uma abissal parvoíce.

P.S. Hoje, o director do Diário Económico vai mais longe e diz que a TVI deu "uma não-notícia".Ele é que fez um não-editorial.

TVI, DEZEMBRO 2009