quarta-feira, 6 de junho de 2007

A greve, a lei e a televisão


Já lá vai uma semana, mas não faz mal. A historieta edificante que vos queria contar não tinha relevância nenhuma para a alta matemática dos resultados da greve.

Tocou-me, na minha televisão, fazer a cobertura da greve nos serviços de saúde de Lisboa. Na véspera decidi contactar alguns hospitais, anunciando a aparição de uma câmara da TVI com um repórter de imagem e comigo atrelados.

Estes contactos prévios, na verdade, não são só uma questão de cortesia. No fundo, destinam-se a antecipar e a evitar chatices. As nossas administrações hospitalares têm mais alergia à televisão do que à gripe das aves.

Eu às vezes digo isto em reportagens e em directos, mas ainda acho que a maioria das pessoas não sabe que um carro de reportagem de uma televisão, à entrada de um hospital, é recebido como um potencial terrorista.

Os hospitais não têm dinheiro para pagar decentemente a médicos de carreira, nem para certos medicamentos, mas não param de aumentar os quadros de seguranças imbuídos de intruções claras para só deixarem passar jornalistas "autorizados". Só eu sei as horas de trabalho que já perdi em portões onde toda a gente entra tranquilamente (e eu também, desde que não esteja a trabalhar).

Honro-me, apesar de tudo, de nunca ter pedido "autorização" para fazer o meu trabalho em locais públicos, de espernear sempre que alguém me tenta impedir e de ter apresentado várias queixas contra encartados delinquentes, infractores relapsos da abominável liberdade de imprensa.

Tenho histórias divertidíssimas.

Lembro-me do ministro Pereira ter ficado encavado quando lhe agradeci, em directo, por estar a filmar no Hospital de Santa Maria. Perguntei-lhe, sempre em directo, se ele sabia a razão do meu reconhecimento. Ele não respondeu. Expliquei-lhe que, uma semana antes, numa outra greve, fora forçado a en
trevistar doentes do lado de fora para o lado de dentro da cerca do hospital. Juro que a comitiva do ministro se riu.

Lembro-me do director de um hospital ao meu lado, num portão, comigo a dar um passo para o lado de dentro e a câmara ligada à nossa frente.

Lembro-me de um polícia nos jardins da Assembleia da República fazer o ar mais espantado do Mundo quando lhe disse que ia desobedecer à ordem dele e continuar a entrevistar um médico-sindicalista. E de ver nascer nos olhos dele uma certa cumplicidade, inconfessável, quando lhe perguntei quem lhe tinha dado a ordem para me impedir, porque essa é que passava a ser a minha notícia para o Jornal Nacional.

Desta vez, eu fiz os contactos. E tive o cuidado de informar que ia fazer reportagem no dia seguinte, sem dar o menor sinal de que se tratava de um pedido de autorização. Num desses telefonemas, informei o meu interlocutor no Centro Hospitalar de Lisboa Central (acho que é assim que se chama) de que ia aparecer na central de consultas externas do Hospital de S. José para ver a greve.

Foi aí que começou esta edificante história. O meu interlocutor explicou-me que "a Administração" tinha decidido que os jornalistas, desta vez, iam filmar a greve no Hospital dos Capuchos para "não ser sempre o S. José a aparecer". Um pequeno problema, portanto, fácil de resolver.

Só que eu, à partida, queria mesmo ir a S. José, porque tinha lá ido noutras greves e pretendia poder comparar. Confesso que, por um estranho pressentimento que não conseguia racionalizar, a opção da "Administração" reforçou o meu interesse. Lá invoquei a lei, lá disse que ia na mesma, que filmaria quem me impedisse e apresentaria queixa-crime a seguir. Formalizei a coisa por escrito.

O problema desbloqueou-se em cinco ou dez minutos. Sem ponta de ironia, o interlocutor da "Administração" é um grande profissional, que me habituei a respeitar.

No dia da reportagem, o José Carlos Barradas, repórter de imagem que me acompanhava, filmou sozinho a central de consultas do Hospital de S. José. Porque não havia jornalistas, não havia funcionários, quase não havia doentes. Aquela sala vazia, onde diariamente costumam estar centenas de pessoas, foi a imagem mais forte da minha reportagem.

Às 9 da manhã fiquei com a impressão de que esta era a maior greve que tinha visto na Saúde, impressão que desfiz quando visitei o Hospital dos Capuchos. Aqui, uns médicos da velha guarda explicaram-me que as tradições dos dois hospitais são opostas em matéria de greve. Eu não sabia. Por isso talvez a "Administração", que agora manda nos dois hospitais, também não soubesse e tivesse só preocupações estéticas.

Explico que só não pedi autorização porque não se negoceiam direitos e muito menos deveres. E a Constituição da República Portuguesa tem lá escrito o direito dos espectadores da televisão onde trabalho a serem informados, o que me dá uma trabalheira porque nem sempre consigo realizá-lo. A Lei nº 1/99, de 13 de Janeiro, deixa claro que eu posso usar o equipamento necessário para realizar esse princípio fundamental.

Mas eu sei que décadas de exame prévio não se alteram por decreto. Tem de se espernear e fazer figura de terrorista, não é? Há coisas piores na vida.

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