A partir da mensagem aos portugueses do Presidente da República tornou-se moda dizer que o problema da "reforma" da Saúde era de comunicação. Os defensores cegos do ministro, mais papistas que o Papa, interpretaram logo que Cavaco Silva caucionava a política e pedia apenas um exercício reforçado de relações públicas. Quem não gostava de Correia de Campos aproveitou para restringir o problema ao ministro, às suas aparições públicas, ao estilo truculento que sempre cultivou e que muitas vezes lhe rendeu louros. Esta última linha de pensamento era maioritária entre os socialistas.
Nunca achei que o sobressalto do Presidente fosse motivado pela comunicação e menos ainda que tivesse como objectivo provocar uma discussão nacional sobre o temperamento do ministro. Correia de Campos é como é e seria até desumano pedir-lhe para ser outra pessoa. Andou mal quando partiu uma cadeira à frente das televisões? É provavel que tenha sido demasiado simbólico para os nossos conhecimentos médios de semiologia, mas sobreviveu bem a isso. Não tinha razão quando disse que os médicos, ou os profissionais de saúde em geral, deviam lavar bem as mãozinhas? Claro que tinha. Expôs-se em ambas as ocasiões? De facto, mas é preciso todos os ministros serem iguais a Silva Pereira?
A avaliação da "reforma" da saúde não deve confundir-se com uma psicanálise de mau gosto ao ministro, mesmo que esse ministro tenha estado tão presente na vida de toda a gente como Correia de Campos.
A "reforma" da saúde começou por ser um instrumento mediático quase sem conteúdo. É bom lembrar que o anúncio de uma guerra às farmácias foi a grande notícia do discurso de tomada de posse de José Sócrates. Durante esse primeiro capítulo, a "reforma" da saúde era um precioso símbolo político, como a empolada guerra às férias dos juízes. Não mudou nada de importante e deixou os eleitores tranquilos, a assistir à tourada pela televisão. A "reforma" serviu então para cunhar o Governo de reformista (uma obsessão portuguesa) e para o primeiro-ministro se assumir como tal. Se os portugueses da rua lhe tinham dado uma maioria absoluta ele não podia falhar essa justa retribuição: mostrar quem manda.
O problema foi quando a "reforma" se deslocou para a vida real. Primeiro com as maternidades, depois com as "urgências". A "reforma das urgências", em boa verdade, ainda não aconteceu. Houve foi um documento técnico sobre as urgências, que ainda não saiu do papel, e uma "reforma" real dos SAP (serviços de atendimento permanente dos centros de saúde). E essa "reforma" tinha a morte lá dentro e pouco mais. Tratou-se de um monumental encerramento colectivo que Manuel Alegre dinamitou, um pouco tarde talvez, chamando-lhe colossal erro político. Acho natural e saudável que haja quem discorde do "erro", já não concordo que ainda se discuta o "político".
O documento técnico sobre as urgências não continha uma única linha sobre SAP. Nada. A não ser numa versão secreta, politicamente censurada (ou esquecida, para não ferir susceptibilidades), em que a comissão publicava (publicaria) a infindável lista de SAP a encerrar, com o cuidado de dizer que se tratava de "informação recebida das Administrações Regionais de Saúde". Esse grupo de peritos lá saberá porque acrescentou ainda uma "nota": "Este assunto não foi alvo de discussão na Comissão Técnica". Vade Retro, Satanás!
O presidente dessa comissão, António Marques, deixou tudo ainda mais claro numa entrevista emitida pela TVI. Reforçou que os peritos não gastaram um segundo com os SAP porque esse era um assunto de cuidados primários. E acrescentou que a ele não repugnava se alguns SAP, não podia dizer quantos, continuassem abertos, mesmo com o novo mapa das urgências no terreno. Recordo-me de provocar um pleonasmo:
_ "Abertos 24 horas?".
_ "Sim, 24 horas", respondeu-me.
Mas, nesses tempos em que a "reforma" não tinha ainda estoirado estrondosamente no país real, era quase proibido pensar. Ou se era pel' a reforma ou se estava contra. A ideologia da "reforma" recusava dúvidas, análises concretas e qualquer invasão de casos reais, por mais graves que fossem. As objecções à "reforma" eram sempre interpretadas como totais. Não se podia duvidar das partes sem renegar o todo imaculado. Esse totalitarismo permitia alvejar à nascença a notícia de qualquer disfunção com acusações de demagogia e ignorância. A "reforma" tinha-se tornado auto-imune, como as piores doenças. A "reforma" era sempre boa porque obedecia a princípios correctos. Nem quando as ambulâncias do INEM continuaram a largar doentes nos SAP de Trás-os-Montes onde já não havia médico, mas apenas enfermeiro, a "reforma" admitiu quaquer diagnóstico externo.
Essa febre tomou conta do SNS. A "reforma" confundiu urgências com doenças agudas, princípios organizacionais e realidade, a província com Lisboa, distância e proximidade, críticas com afrontamentos pessoais. E cometeu ainda um erro de lógica mortal: trocou pressuposto por consequência, no que diz respeito ao INEM. As ambulâncias, as viaturas de emergência, os médicos e os técnicos qualificados apareceram quase sempre atrás dos casos, não é verdade? A Comissão Técnica bem escreveu (e até deu entrevistas) a dizer que o reforço sério dos meios de emergência era indispensável à reorganização do mapa. O que aconteceu? Não foi só o Gato Fedorento a perceber.
Quatrocentos anos depois de António Vieira, que continuamos a entregar aos peixes, para além da inveja devemos confessar outro pecado: o maniqueísmo. Um pensamento a preto e branco premeia a preguiça, talvez dê lugares e cultive simpatias, mas não transforma a realidade.